17.10.04

Comentador de Bancada #2

Da imprensa de referência nacional neste fim-de-semana, destaco dois artigos, ambos publicados no jornal PÚBLICO.
Eu sei, bem tentei ver algo de interessante no EXPRESSO, mas apesar de andar de olho nas sestas de Santana Lopes, o jornal do arquitecto está um pouco chato. Este semanário, em termos jornalísticos começa a assemelhar-se a um "chat room" de luxo, onde sob pseudónimos, certas personagens enviam mensagens, recados e reminders a sei lá quem - eles sabem quem são, diria o outro. Em linguagem de chat, qualquer dia são banidos pelo administrador do canal! (Humm...que interessante analogia).
Por outro lado, que se passa com o EXPRESSO para se ter tornado num sucedâneo de brochura imobiliária?!!! Já repararam na overdose de resorts, condomínios, empreendimentos e sonhos à venda nas largas páginas deste semanário? E ainda há o aumento do peso gerado pelos milhares de encartes que habitualmente antecipam neste jornal o Natal comercial que aí vem! Ai ai EXPRESSO.

O primeiro artigo, da autoria de Helena Matos, foca dois temas: o fascínio Português pela autoridade dos Professores (não, não aqueles que não conseguem preencher na íntegra um formulário informático e vêm para a televisão chamar Xulo (com X) ao patrão; não falo dos professores que ensinam) e esse novo euro-cromo italiano chamado Rocco Buttiglione (óptimo nome para actor porno).
O segundo, de Augusto M. Seabra fala só sobre as reacções provocadas pelas afirmações do tal italiano. Sinceramente, nunca pensei em citar ou simplesmente concordar com ele, mas faço minhas as suas palavras.

O senhor Rocco Buttiglione e a polémica gerada pelas suas afirmações (que não têm parado) são um exemplo óptimo de uma dos temas que, na minha óptica, mais emanam dos status quo político actual: a dialéctica entre personalidade e subjectividade individual versus papel e objectividade funcional da "boa política" e a forma como estas dimensões se contaminam: ou, de outro modo, como o desempenho de um determinado cargo público deve ou não estar alinhado com os valores e respectivas representações dos que ocupem esse lugar ou de como o papel que se espera seja assumido por quem atinge esses cargos limita as exposição das suas crenças.

Desejaremos nós que as decisões de instituições com o peso e poder da Comissão Europeia sejam tomadas dentro do quadro de referências e convicções do elementos que compõe a Comissão ou pelo contrário, os Comissários devem ser agentes desapaixonados pelas questões que tratam, aplicando uma lógica processual e de gestão por indicadores, sondagens, lobbys, realpolitik, etc. Eis um debate que considero interessante.
Pelo menos contemos com o equilíbrio no seio desta Comissão, e se o Sr. Buttiglione é um homofóbico "de poche" temos o Comissário Peter Mandelson, gay assumido, para compensar a deriva "diácona" da Comissão. A grande dúvida será como situar José Manuel Barroso nesta particular contenda. Será terceira via?

A República dos Professores
HELENA MATOS
Público, 16/10/2004

Há duas semanas que se discute o "fait divers" Rebelo de Sousa. Detrás das moitas saltam agora outros colunistas gritando que também eles foram vítimas de perseguições e creio mesmo que, de agora em diante, qualquer colunista fará do caso Marcelo o seu seguro de vida. Claro que nem todos os comentadores podem contar com a benesse dumas declarações como as de Gomes da Silva que estendem sob os pés do mais inócuo o tapete vermelho da perseguição, última etapa antes da consagração no panteão dos intocáveis. Marcelo tirou e tirará o proveito político que puder desta situação e estranho seria que não tirasse. O que faz Marcelo Rebelo de Sousa senão política? Aliás Marcelo protagoniza um estatuto que é invejável para os políticos: tornou-se Professor. O termo Professor quando maiusculado gráfica ou foneticamente e aplicado a um político não tem nada a ver com actividades lectivas. Não interessa nada o que, na sua vida profissional, faz o Professor porque o estatuto do Professor implica, em Portugal, uma espécie de imaterialidade que o livra dessas coisas comezinhas do dia-a-dia como os vencimentos. Neste imaginário associa-se o Professor a alguém que, na esfera intelectual, é muito bem remunerado graças a actividades difusas como pareceres e colóquios. De alguma forma na questão do dinheiro o Professor assemelha-se ao Artista ou ao Poeta (também eles gráfica e foneticamente maiusculados): o seu valor não é objectivo mas subjectivamente está implícito que, por mais que se lhe pague, esses montantes serão sempre uma mesquinha expressão material face a tanto Saber e Génio. Por exemplo, recorde-se a escolha do secretário-geral do PS. Quantos artigos foram feitos sobre os rendimentos de Sócrates? E quantos sobre o mesmo tema foram dedicados a Manuel Alegre? Manuel Alegre é um Poeta, logo até parece acintoso abordar-se essa temática acerca de si. Já quanto a Sócrates, que segue o teleponto e não as Musas!, antes pelo contrário, está agarrado às coisas mesquinhas do mundo.

Uma das características mais interessantes deste estatuto do Professor prende-se com o facto de elevar os poucos que dele usufruem acima dos outros comuns políticos. Estes, por contraste, ficam transfigurados numa espécie de turma irrequieta, preguiçosa e bulhenta. Os Professores apresentam-se como vultos não movidos pela paixão, nem pelo desejo de ganhar os combates políticos. As soluções indicadas pelos Professores são ungidas pelo Saber e estão livres da mácula da política. O Professor funciona no imaginário português como a Câmara dos Lordes ou os senados. Assim se explica também que sendo professores alguns políticos no activo eles só comecem a ser referidos pelo majestático Professor quando oficialmente deixam a política activa e, na verdade, a trocam por outra forma de fazer política. Deixam de ser "o Cavaco", "o Marcelo", "o Freitas"... e tornam-se no Professor. Esta passagem não é fácil e poucos conseguem cumprir os rituais de investidura. Mas uma vez superadas todas as barreiras entra-se no Olimpo.

Tal como acontecia na Antiga Grécia, também este heróis têm os seus seguidores, aqueles que, quais sacerdotisas de antiquíssimos oráculos, lhes interpretam as mais simples frases, os silêncios, os olhares. Mesmo os jornalistas, sobretudo aqueles que cultivam um ar pesporrento face aos outros políticos, quando entrevistam os Professores parecem ter acabado de sair dum anúncio da Tele2 e, a cada olhar, interrogar-se e interrogarmo-nos: "Como é possível que ainda não tenhamos levado este homem em ombros até ao lugar que lhe compete?" Sim, porque a grande lição de todos os Professores é essa: eles sabem qual é o lugar que merecem na sociedade. Aparentemente não mexem um dedo para chegar lá. Somos nós que não só lhes temos de pedir que, em nome do bem comum e do país, abandonem essa espécie de retiro intelectual e espiritual em que são felizes, como ainda penitenciarmo-nos por não o termos feito antes. Em Portugal, esta trata-se duma estratégia com reconhecido sucesso para conquistar o Poder - basta pensar em Salazar ou Marcelo Caetano. Mas não só. Os Professores são os nossos grandes sobreviventes políticos. Essa espécie de desprendimento dos lados mesquinhos da vida de que beneficiam leva a que nunca fiquem em absoluto comprometidos com o seu passado: Veiga Simão, Adriano Moreira, José Hermano Saraiva... provam-nos que, aos Professores, não só lhes é mais fácil a reconciliação com os novos tempos como mais provável que acabem incensados pelos seus antigos detractores.

II) Frequentemente chocamo-nos com a indiferença manifestada, no passado, perante factos que hoje nos indignam e nem damos por que, no nosso tempo, estamos nós mesmos a enfermar dessa selectiva cegueira que tanto nos surpreende no passado. Exemplar deste paradoxo são os temas abordados num seminário sobre jornalismo que, em 1976, decorreu em Portugal. Questões como a clivagem entre tipógrafos e jornalistas naqueles países que, como os EUA e a Suécia, tinham aderido à informática prestaram-se então a profundíssimas reflexões que, em geral terminavam com os oradores e a assistência a exorcizarem tal cenário dos seus países e das respectivas redacções. Curiosamente não mereceu grande atenção uma questão suscitada por uma das jornalistas presentes, Maria Antónia Palla, que interrogou os oradores sobre a forma como, dentro do respeito pela ética, se deveriam noticiar os crimes contra mulheres e menores, Em 1976, a importância da relação entre o jornalista e o tipógrafo surgia como muito mais importante do que essa matéria da violência doméstica e dos abusos de menores que, em boa verdade, a imprensa séria de então não abordava. Hoje sabemos quem estava do lado da modernidade naquele seminário. E creio que dentro de alguns anos nos interrogaremos sobre alguns casos que, neste ano de 2004, temos despachado de forma apressada, um pouco como aqueles assistentes do seminário obcecados em resistir à informatização. Por exemplo, esta semana, foram despedidos dois jornalistas da televisão alemã RTL II, por, na edição, não terem cortado as imagens que davam conta do momento em que um dos concorrentes do Big Brother contava três anedotas sobre judeus. Convém não esquecer também que, nas declarações do porta-voz da RTL II, se ficou a saber que o concorrente que contou as anedotas, um italiano residente em Hamburgo, foi ameaçado de expulsão. E se em vez de ridicularizarem judeus as anedotas versassem nazis ou comunistas? Ou, aportuguesando o exemplo, alentejanos? Interessante será saber qual a solidariedade que receberão estes dois jornalistas e qual a repercussão dada a essas iniciativas, caso venham a acontecer. Simultaneamente, o italiano Rocco Buttiglione vê o seu nome vetado para comissário europeu não por causa daquilo que defende do ponto de vista legislativo mas sim pelas suas convicções religiosas. Se recuássemos algumas décadas, Rocco Buttiglione seria provavelmente interrogado não sobre o casamento e a homossexualidade - que era então unanimemente considerada à esquerda e à direita como um comportamento censurável quando não criminoso - mas sobre o que pensava da origem da vida, matéria que deu azo a enormes polémicas entre católicos e ateus e levou a que convicções religiosas e espírito científico fossem considerados incompatíveis. Cada época selecciona quem está disposta a calar e a apagar. Geralmente essa escolha faz-se em nome do bem comum. Às vezes, até se faz em nome da liberdade

Torquemada, Disse?
AUGUSTO M. SEABRA
Público, 17/10/2004

A única vantagem possível que pode resultar imediatamente da ida de José Manuel Barroso para Presidente da Comissão Europeia será uma maior disponibilidade da opinião pública portuguesa, admitindo que ela exista, às políticas e mecanismos das diversas instituições da União.

É neste quadro que, no plano dos princípios e no da pedagogia, estou em frontal discordância com José Manuel Fernandes (J.M.F.) logo ao primeiro "caso" desta presidência de Barroso, o da indicação de Rocco Buttiglione para os Assuntos Internos e do parecer contrário da Comissão de Liberdades Cívicas do Parlamento Europeu.

O indigitado comissário, um próximo do Papa, considera a homossexualidade um "pecado" e, no tocante aos direitos da mulher, que "matrimónio" supõe "maternidade" - acrescentando ainda que considerar uma orientação sexual como "pecado" não é o mesmo que "crime", e que ao homem compete apoiar a mulher.

No entender de J.M.F., Buttiglione explicou perante a Comissão "que sabia 'distinguir entre moralidade e lei', o que implica que 'muitas coisas podem ser consideradas imorais sem terem por isso de ser proibidas'; depois, com lógica, acrescentou que 'podia considerar que a homossexualidade era um pecado sem que isso implique querer criminalizá-la'. Afinal, 'O Estado não tem o direito de meter o seu nariz neste domínio'. Trata-se de uma declaração corajosa de alguém que não abdica da sua fé particular e que mostra impecáveis credenciais liberais". Como assim?! Posso até tomar nota que Buttiglione não abdique da sua "fé particular", mas "impecáveis credenciais liberais" não descortino.

Infelizmente é apenas uma das várias falácias de J.M.F. Considera ele que por muito detestável que seja o Governo de Berlusconi, é das regras da democracia que indique quem entenda para a Comissão. É um facto. Creio ter até um razoável conhecimento da situação italiana para dizer que, na área desse Governo, Buttiglione, provindo da antiga Democracia Cristã, é um dos mais europeístas, coisa que não se pode dizer do próprio Berlusconi ou sobretudo da Liga Norte. A questão, que J.M.F. totalmente oblitera, é contudo outra.

Uma vez obtido o seu voto favorável no Parlamento, a primeira tarefa de Barroso, e a sua primeira dificuldade, era a de gerir os nomes que lhe tinham sido indicados pelos governos pelos diferentes pelouros da Comissão. E a escolha de um homem com as convicções de Buttiglione para uma "pasta" que engloba as Liberdades e Direitos é péssima.

Não creio que se possa falar de uma "Europa dos cidadãos", a perspectiva que, suponho, em última instância nos interessa, sem supor também que o comissário com os Assuntos Internos esteja atento e tenha capacidade de chamar a atenção da Comissão para esta propor ao Conselho ou ao Parlamento as matérias de liberdade e direitos, que abrangem a não discriminação em função de género ou orientação sexual.

Buttiglione acha que "o Estado não tem o direito de meter o seu nariz neste domínio" e J.M.F. fica em êxtase "liberal"! Será assim tão simples? O Estado não tem que regular a vida privada (era o que faltava!), mas tem que assegurar justamente que cada indivíduo, cada cidadão e cidadã, livres e iguais perante a lei (uma matriz da cultura europeia e mesmo "ocidental" de que J.M.F. tanto se reivindica, e eu também), possam usufruir do seu estatuto. O que Buttiglione propõe é que as mulheres aceitem uma função especificamente reprodutora dentro do "matrimónio", e que os "homossexuais" usufruam o seu "pecado" no estrito domínio da privacidade. São isto liberdades e direitos? É isto liberal?

Mas há mais. J.M.F. entende que a Comissão chumbou "pomposamente" o nome de Buttiglione. Desde quando um mecanismo parlamentar de audição e verificação, mesmo num caso não-vinculativo como este, é "pomposo"? Num liberal, como J.M.F., esta desconsideração dos mecanismos da democracia representativa é-me absolutamente surpreendente.

Mas a argumentação de Buttiglione impressionou muito J.M.F.: "Como homem culto, conhece a origem da palavra 'matrimónio' que traduz o conceito de um contrato que visa proteger a mulher e os seus filhos, implicando obrigações para os maridos." Seria o argumento filológico: "matrimónio" supõe "mátria", "mãe". E daí se deduziria um fundamento "natural" e uma ontologia.

Acontece que a relação que o direito civil - e os direitos - consagra não é o "matrimónio", um sacramento sagrado para a Igreja, mas sim o casamento. A mim nunca me foi perguntado se "queria contrair matrimónio"; declarámos que queríamos contrair casamento, um contrato de união.

A afirmação de Buttiglione, "O Estado não tem de meter o seu nariz neste domínio", tem a sua inteira validade se considerarmos sim que o Estado nada tem a ver com o facto de aqueles que perante ele celebram um contrato entenderem também consumar o acto recebendo o que consideram ser o sacramento do matrimónio. Mas o que à sociedade civil e politicamente organizada importa é o casamento.

É muito fácil dizer, como Buttiglione fez, e outros repetiram, que ele separa as suas convicções pessoais da lei. Mas então, sabendo que a homofobia e a discriminação das mulheres (duas posições de facto tão reiteradas pelo Vaticano woytiliano a que o comissário está tão estritamente ligado) são matérias reais as quais, tendo que ser enfrentadas no plano das mentalidades, há também que considerar no quadro das acções políticas e dos enquadramentos legais, incluindo o nível supranacional europeu, sabendo-se isso, a indicação de Buttiglione é, das duas uma: ou uma opção pela inacção, ou um desafio a que viole a sua própria consciência - poderá ele levar por exemplo à consideração medidas "permissivas" do "pecado"? Então?

Não é esta a primeira vez que J.M.F. usa de uma figura retórica de subscrever ou justificar uma argumentação dominante (é uma evidência empírica que num país como Portugal opiniões como a de Buttiglione colhem larga aceitação) como se fosse esta a estar acossada. Agora chega mesmo a falar, a propósito do voto da Comissão, dos que "vestem a pele de Torquemada dos nossos dias". Torquemada era inquisidor, e a sequela do Santo Ofício é a Congregação da Doutrina da Fé do cardeal Ratzinger que elabora os documentos pontifícios que o católico Buttiglione subscreve e o laico J.M.F. justifica (por exemplo, "A Coerência do Papa", editorial de 03/08).

O estatuto editorial deste jornal é-me particularmente grato. "O PÚBLICO considera que a existência de uma opinião pública informada, activa e interveniente é condição fundamental da democracia e da dinâmica de uma sociedade aberta, que não fixa fronteiras regionais, nacionais e culturais aos movimentos de comunicação e opinião; O PÚBLICO participa no debate das questões que se colocam à sociedade portuguesa na perspectiva da construção do espaço europeu e de um novo quadro internacional de relações". Só posso ainda mais desejar que os espaços de opinião se abram também com estes e outros desafios europeus. O risco de com uma argumentação retoricamente liberal se comparticipar de uma democracia afinal "iliberal" diz-nos respeito a todos.